Moderar demanda e câmbio são grandes desafios, diz Belluzzo

06/01/2011 - Por Bancários CGR

Valor Econômico
Sergio Lamucci e João Villaverde

O governo Dilma Rousseff precisa encontrar um arranjo de política econômica que permita ao mesmo tempo ajustar o ritmo de crescimento da demanda - hoje "um pouco excitada" - e enfrentar a questão do câmbio valorizado, que desarticula cadeias produtivas inteiras, diz o professor Luiz Gonzaga Belluzzo, da Unicamp e da Facamp.

Para ele, é necessário, de fato, controlar as despesas correntes e elevar o superávit primário, para que se consiga executar uma política fiscal anticíclica, "exatamente para não exigir depois do Banco Central uma ação mais enérgica".

Belluzzo não descarta uma alta de juros, mas tampouco a considera inevitável. Uma elevação da Selic pode agravar ainda mais a valorização do câmbio, num mundo em que há farta liquidez internacional. Aumentar ou não a taxa vai depender do "mix monetário e fiscal", afirma Belluzzo, que elogia medidas de contenção ao crédito adotadas recentemente pelo BC, que lançou mão de outro instrumento que não os juros.

O professor mostra grande preocupação com o câmbio valorizado e seu impacto sobre a indústria, que já sofre com o desmonte de algumas cadeias produtivas, num cenário de forte aumento das importações. "O calcanhar-de-aquiles do governo Lula foi a questão cambial, que pode nos custar caro no futuro. Esse é o enigma que Dilma vai ter de decifrar", afirma Belluzzo, que vê, contudo, um saldo bastante positivo no governo Lula, citando a aceleração do crescimento, a redução da pobreza e a incorporação de milhões de pessoas ao mercado consumidor.

Um dos conselheiros econômicos mais importantes do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Belluzzo também é interlocutor frequente do ministro da Fazenda, Guido Mantega. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Valor: O Brasil fechou 2010 com um ritmo de crescimento de 7,5% a 8%, muito puxado pelo consumo das famílias, com a inflação perto de 6% e o câmbio valorizado, facilitando as importações. Qual é o primeiro desafio do novo governo?

Luiz Gonzaga Belluzzo: Há alguns desafios instigantes, tanto do ponto de vista do observador como do policy maker. Um deles é manter a economia numa trajetória, que eu não vou dizer de equilíbrio, porque tal coisa não existe numa economia capitalista, mas numa trajetória saudável.

Nos últimos dois anos, sobretudo neste último, a recuperação da economia foi realmente puxada pelo consumo, ainda que o investimento tenha tido uma expansão bastante razoável nos últimos trimestres. No caso da inflação, há dois componentes. Ela tem a ver, sim, com a aceleração da demanda, porque isso está expresso na inflação de serviços.

E há uma inflação que decorre do choque de commodities. É preciso que o governo tenha claro que tem que apaziguar um pouquinho esse ímpeto da demanda. Mas restringir a gestão macroeconômica pelo lado monetário e do crédito simplesmente à taxa de juros não é compatível até com a natureza e a força dos sistemas financeiros modernos. É óbvio que tem que usar os instrumentos adequados, como o governo está tentando fazer agora. As medidas ["macroprudenciais" de controle do crédito] estão na direção correta.

Valor: As medidas de contenção ao crédito substituem ou podem diminuir um aumento de juros?

Belluzzo: Acho que elas são complementares. Você não pode supor que ela vá substituir, assim como a questão fiscal.

Valor: O sr. vê a necessidade de fazer um ajuste fiscal ou pelo menos de mudar a orientação da política fiscal no começo do governo?

Belluzzo: Isso eu não preciso dizer, porque parece que o governo já sinalizou que vai fazer isso. Eu discuto com os meus amigos keynesianos que ficam nervosos quando eu digo que precisa fazer ajuste fiscal, porque eles acham que Keynes era um gerador de déficits, e Keynes não é isso. Quem lê a obra de Keynes sabe que ele é muito cauteloso.

Nas recomendações de política do pós-guerra ele diz claramente que você precisa ter um orçamento corrente sempre equilibrado e usar os instrumentos do orçamento de capital, os gastos de investimentos, que geram ativos lá na frente.

Há uma discussão sobre a confiabilidade do governo na execução dessa promessa, porque uma coisa é falar e outra é fazer, mas acho perfeitamente factível o governo avançar na meta de superávit primário e conseguir executar uma política anticíclica, exatamente para não exigir depois do Banco Central uma ação mais enérgica.

Valor: O sr. acha que uma alta de juros não é inevitável?

Belluzzo: Vamos ver. Eu tenho falado com muita gente do mercado e até alguns economistas de banco têm me dito que está um pouco exagerada essa pressão do mercado sobre o BC. Mas é um jogo de coordenação de expectativas.

Valor: O BC fica muito pressionado por causa das expectativas?

Belluzzo: O problema é que, se você for pegar um retrospecto, há erros escandalosos do mercado na projeção de inflação. Essa questão da capacidade preditiva dos modelos é muito limitada. É melhor considerar a política monetária mais como uma arte do que como uma ciência.

É mais parecido como o trabalho de um grande chefe de cozinha. É mais de sensibilidade. [O ex-ministro Antonio] Delfim Netto diz que há uma pretensão científica de uma precisão e uma certeza que você não tem. E isso não quer dizer que se deva ser condescendente com a inflação.

Valor: O sr. não está descartando uma alta de juros nem dizendo que ela é indispensável?

Belluzzo: Acho que depende do mix monetário e fiscal. Qual é o inconveniente de um aumento de juros? É o fato de que, num mundo em que há abundância de liquidez, pode aumentar a pressão sobre o câmbio. Isso pode se tornar um problema sério. Se você conversa com os industriais e as suas respectivas cadeias produtivas, vê que isso está se tornando uma questão muito grave. Você está desmontando cadeias inteiras.

Valor: A produção industrial está estagnada desde abril, com a demanda crescendo forte e as importações em alta intensa. O sr. acha que está havendo desindustrialização por aumento de importações.

Belluzzo: Há uma desarticulação muito importante das cadeias produtivas. O pessoal da siderurgia sabe disso muito bem, sabe o que está ocorrendo com a demanda deles. Em boa parte a demanda interna de aço não cresce muito porque o aço vem importado, chegando mais barato, além de já chegar nos próprios produtos importados.

Valor: Além do câmbio, os industriais têm apontado o custo elevado de mão de obra no Brasil. Como enfrentar essa questão?

Belluzzo: É necessário pensar numa alternativa para os encargos que incidem sobre a folha de salários. É importante desonerar os encargos, para que haja mais competitividade. Outra questão que o governo vai precisar enfrentar é a desoneração das exportações. Há notícias de que não se conseguem recuperar os créditos. Isso tem a ver também com a guerra fiscal. Há três problemas aí. O câmbio, o excesso de impostos que se exporta e a guerra fiscal, que faz com que os Estados às vezes facilitem a importação. Essas medidas de facilitar importações são um delírio. É um negócio que vai causar prejuízo para o país inteiro.

Valor: O IOF sobre fluxos de capitais é eficaz para evitar uma valorização cambial maior?

Belluzzo: Há formas de burlar, mas se for assim você não vai fazer nada. É preciso ir além do IOF, operando no mercado futuro, onde muitas negociações, que acabam por valorizar o câmbio, são feitas. Digamos que o governo impeça operações de 30 dias e de rolar por mais tempo, exigindo que as operações sejam feitas em 180 dias, além de dar volatilidade na taxa de câmbio. Isso seria ótimo, porque hoje o investidor deita e rola.

Valor: O câmbio é o principal desafio do governo Dilma?

Belluzzo: É o conjunto da obra. Como fazer um arranjo de política econômica que provoque um ajuste do crescimento, da demanda que está um pouco excitada e, ao mesmo tempo, possibilite uma desvalorização administrada do câmbio, para que também não haja um choque cambial. Há dois riscos aí. Um é o de ter uma desvalorização do câmbio abrupta por causa de uma parada súbita de capitais.

Eu não acho que isso esteja no horizonte, mas de repente os juros no mundo desenvolvido podem subir e virar a engrenagem da arbitragem. Há esse risco, embora eu não ache que ele seja iminente, até porque a situação da Europa é muito ruim, é terminal.

Já nos EUA, apesar de todas as omissões que o governo cometeu, a situação é melhor, do ponto de vista da recuperação. Mas pode haver uma reversão dos fluxos de capitais.

Valor: Mesmo com o nível de reservas que nós temos hoje pode haver uma desaceleração abrupta?

Belluzzo: Acho que nós estamos mais defendidos hoje. É verdade que em 1998 e 1999 a situação era diferente, porque nós não tínhamos o câmbio flutuante, mas quando começou a pressão sobre o real que levou à desvalorização, o Brasil tinha US$ 74 bilhões de reservas internacionais, e elas se esvaíram em três meses.

O outro risco é o avesso desse. Imagine que de repente se acelera a exploração do pré-sal e o pessoal esquece completamente o câmbio, porque não vai haver problema de financiamento externo.

Valor: A previsão é de um déficit em conta corrente de 2,5% do PIB em 2010, passando de 3% a 3,5% em 2011. Nós podemos entrar num processo de déficits em conta corrente elevados e continuados?

Belluzzo: Se deixar, o déficit vai logo para 5% do PIB. Acho que isso pode ocorrer e a probabilidade não é baixa, se continuar esse arranjo macroeconômico. É possível que se chegue lá ainda com as penas da desindustrialização. Reduzir muito o peso da indústria no valor adicionado tem consequências ruins para o emprego.

Não vamos nos esquecer que quando os EUA começaram o processo de globalização de suas empresas, a sair em busca de regiões em que a taxa produtividade/salários fosse maior, isso foi concomitante a uma queda importante do nível de vida da classe média americana. Temos de olhar isso com muito cuidado porque o Brasil pode ter esse fenômeno de modo precoce, já que não chegamos ao patamar de renda dos EUA.

Valor: Como se combate esse risco de déficit em conta corrente, com um risco de desindustrialização precoce?

Belluzzo: Nós temos que ter um arranjo macroeconômico que permita recuperar um câmbio competitivo. É importante nos darmos conta de que a dimensão de ativo do câmbio ganhou preeminência em relação ao de preço relativo, por conta do movimento de capitais.

Já há um convencimento de que é preciso colocar um pouco de disciplina nisso, porque os movimentos de capitais são sempre pró-cíclicos. Alguém já viu um movimento anticíclico do mercado?

Valor: O arranjo macroeconômico tem que ter o câmbio competitivo e o que mais?

Belluzzo: É preciso ter estratégia de longo prazo, concentrada nessa ideia de ter um programa de investimento público muito bem definido e financiado, com objetivo muito claro.

Valor: O PAC é isso?

Belluzzo: De alguma maneira é, sim. Nós ficamos discutindo essas questões de curto prazo e esquecemos que no longo prazo temos um problema de infraestrutura, um problema gravíssimo em educação e agora, finalmente, parece que virou consenso que há um problema na área de desenvolvimento científico e tecnológico. O problema da educação básica é seríssimo, e não adianta mais dar desculpas. Temos que, de alguma maneira, enfrentar isso.

Valor: A partir do segundo governo Lula houve o PAC, o Minha Casa, Minha Vida, os bancos públicos ofereceram taxas mais baixas, o BNDES dobrou de tamanho. Qual é o papel do Estado que Dilma herda?

Belluzzo: O Estado brasileiro é indutor, por meio de seus bancos públicos, do BNDES, do PAC, da Petrobras. Não vejo nenhum estímulo nem nenhuma necessidade de mudar isso. O Brasil tem um sistema público de financiamento que funcionou de maneira muito eficaz na crise, comprando carteiras de bancos menos líquidos, atendendo inclusive um pedido do presidente Lula.

A queda do PIB em 2009 [de 0,6%] teria sido muito maior sem a participação dos bancos públicos. Além disso, o BNDES cumpriu um papel fundamental, ao manter o investimento e permitir que as empresas se recuperassem rapidamente da queda abrupta.

O problema naquele momento foi o BC, que demorou muito para cortar os juros e, quando começou, cortou pouco. Estaríamos numa situação menos aflitiva se o BC tivesse aproveitado a crise para ir mais longe, reduzindo mais a Selic.

Valor: O sr. se preocupa com o aumento da dívida bruta do governo causado pela capitalização do BNDES pelo Tesouro?

Belluzzo: Não. A capitalização do BNDES significa uma mudança de seu endividamento. Isso não vai se repetir. Serviu para a recuperação e aceleração da economia, em 2009 e 2010, e não deve mais ser feito.

Valor: E a engenharia contábil para engrossar o superávit primário do ano passado, aproveitando a capitalização da Petrobras?

Belluzzo: É uma coisa que se faz uma vez e não vai repetir. Agora é hora de ir atrás do superávit primário legítimo.

Valor: Uma das metas colocadas pela presidente Dilma é levar a dívida pública líquida a 30% do PIB em 2014, que hoje está em 41%. O sr. acha que será feito por meio de superávit primário mais elevado ou de PIB crescendo forte?

Belluzzo: O mais interessante seria fazer com crescimento acelerado e com primário alto, com o gasto público funcionando de maneira anticíclica. Agora é hora de apertar os gastos. Dessa forma é possível, sem dúvida.

Valor: O que precisa ser feito para reduzir mais fortemente a Selic?

Belluzzo: É preciso mexer no juro real da poupança, que precisa virar uma taxa de juros nominal, como ocorre em qualquer país civilizado. Isso é uma herança do período inflacionário, bem como as indexações das tarifas. Temos enorme concentração de recursos nas operações compromissadas, indicativo do "curto-prazismo" dos investidores. Isso deveria ser remunerado abaixo da Selic, essa indexação à Selic é péssimo.

Valor: Que balanço o sr. faz dos oito anos do governo Lula?

Belluzzo: Lula tomou posse num clima muito ruim, com o dólar a R$ 3,53, uma desconfiança enorme dos mercados. Havia um temor horrível nos mercados. Cheguei a receber 15 delegações estrangeiras me perguntando se repetiríamos a crise argentina. Mas Lula foi muito cauteloso e contou com a sorte, porque foi o momento em que a China começou a acelerar. Houve uma demanda impressionante de commodities, algo que nunca tínhamos visto.

A política econômica mais cautelosa foi importante num momento, ainda que em 2004 o BC tenha errado a mão ao elevar muito os juros e abortar o crescimento de 2005. Tivemos problema de descoordenação, mas a partir do segundo mandato as coisas ficaram mais sob controle, até, em boa medida, graças ao papel da Dilma, na definição e gestão do PAC, ao mesmo tempo em que as condições externas continuaram muito favoráveis até o fim de 2008, quando estourou a crise.

Valor: Por que o Brasil se saiu bem na crise?

Belluzzo: Os bancos públicos tiveram um papel importante. Sem nada que parecesse maluquice, fizeram tudo direitinho. Segundo, a política anticíclica fiscal que o Guido [Mantega, ministro da Fazenda] tocou, ajudou o país a sair muito rápido da crise. Faço avaliação muito positiva do governo Lula e mais positiva ainda se compararmos com as expectativas.

A redução da desigualdade é importante, mas não dá para ser exagerada, porque não podemos mapear com clareza o topo da pirâmide, apenas a da base. Mas a redução da pobreza é inequívoca. Os aumentos reais do salário mínimo foram uma política ainda mais importante que o Bolsa Família nesse sentido. Além disso, vimos a taxa de crescimento do Nordeste superar a média nacional.

Antes o crescimento era muito concentrado. O crédito consignado, bem como o salário mínimo, trouxe muita gente para o mercado consumidor. Esse ganho precisa ser mantido. Por isso a inflação deve ser bem combatida, porque atinge mais os de baixo.

Valor: E os principais erros?

Belluzzo: O calcanhar-de-aquiles do governo Lula foi a questão cambial, que pode nos custar caro no futuro. Esse é o enigma que Dilma vai ter de decifrar. Foi tão ruim quanto a valorização do governo Fernando Henrique Cardoso. As pessoas criticam a política fiscal do Lula, mas esquecem que a política fiscal do primeiro governo FHC foi desastrosa.

FHC, de quem eu gosto muito, fica nervoso quando se faz essa comparação, mas é preciso entender que aquele regime macroeconômico que prevaleceu até 1999 foi desastroso e teve consequências ruins para a economia, que cresceu pouco.


Fonte: Valor Econômico

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